Monthly Archives: January 2008

Poucos sabem morrer


por Bruno Moreschi
Publicado na revista Piauí (01/2007)

No dia 15 de dezembro, na favela paulistana de Heliópolis, o futebol no pátio da fábrica foi cancelado. Era dia de luto. Zizinho morreu. “De quê?”, perguntou a vizinha ao ver a multidão chegar à casa de dona Adelina. O menino de 10 anos havia sido atropelado por um caminhão. O motorista fugiu, Zizinho ficou no asfalto.

Xavier Goulart, 58 anos, tio de Zizinho, foi o único que não se aproximou do caixão. Durante o discurso do pastor, saiu de fininho. Acendeu o cigarro com a mão esquerda, a do indicador que nasceu pela metade. “O moleque definitivamente não soube morrer”, comentou. Gostava de Zizinho. Três semanas antes, num raro momento de carinho, havia comprado para ele, por 19,90 reais, As Mais Belas Histórias da Bíblia. Zizinho abriu e folheou o livro ilustrado na frente do tio, que ficou furioso quando percebeu que a seleção não incluía a crucificação de Jesus. Quase pegou o presente de volta.

O que diferencia Xavier de outros taxistas do ponto da Peixoto Gomide em frente ao Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo, é a sua maneira de encarar a existência. Xavier não acredita que a vida valha grande coisa. Pode ser rei, pode ser mendigo, todo mundo é ninguém até a hora de morrer. Agora, se a pessoa morrer dignamente (o que, para ele, pressupõe comoção nacional e/ou internacional), é hora então de tirar do porta-luvas a caderneta Ilustres que se Foram e registrar ali o nome do falecido. A caneta não é a Bic azul que Xavier oferece aos clientes para assinarem o cheque da corrida. Essa é de um tipo que ele só encontra numa galeria de produtos ilegais da avenida Paulista. Enquanto solta a tinta, a caneta exala um perfume de uvas que logo alcança as narinas do taxista. Ele então abandona no banco do passageiro a máscara da sisudez e, solitário, chora. “É a hora em que o homem dá lugar ao mito”, resume.

Foi assim com Paulo Autran, por quem Xavier nunca se interessara até que diagnosticaram um câncer no pulmão do ator. Não era tarde demais. Ainda foi possível ver Autran em O Avarento. O que achou? Xavier não sabe. Só teve olhos para o quase ex-homem. Os aplausos finais duraram belos dez minutos, o que o fez ter certeza: ali estava um espécime humano digno de sua observação.
No dia 12 de outubro, às 16h13, três minutos após a morte do ator, Xavier mais uma vez se desfez da máscara. Dentro do táxi, parado no ponto do Sírio-Libanês, ele percebeu que jornalistas, antes sorumbáticos pela espera da Ceifeira, começam a se mexer como baratas tontas. Som de helicóptero, refletores acesos. As luzes da TV chegam até seu rosto. Xavier olha para cima, tentando imaginar em qual andar Autran estaria. E, sorrindo respeitosamente, imagina Willem Dafoe no papel de Jesus Cristo rumo à cruz, no filme de Martin Scorsese. Outras duas imagens lhe vêm à mente: a multidão de ingleses depositando flores no Palácio de Buckingham para a princesa Diana e o zazzz seguido de bum! que anunciou a morte de Ayrton Senna. Ele nunca se esquecerá de que em poucos minutos apareceu na pista um vultoso helicóptero branco de listas alaranjadas para levar embora o corpo do piloto. “Helicópteros combinam com mortes que se prezem”, explica.

Enquanto o Brasil era informado de que Paulo Autran se fora, Xavier preenchia a caderneta. Por descuido, escreveu “Atran”, erro do qual nunca se deu conta. Em seguida, premiou o nome com quatro estrelas, a mesma avaliação atribuída aos atores Raul Cortez, Nair Bello e Gianfrancesco Guarnieri. Senna e Diana mereceram cinco. Jesus Cristo é o único com seis.

Cinco dias depois, ainda pensativo, perambulava pela cidade com seu táxi. Apontou para uma multidão que atravessava uma faixa de pedestres na rua Augusta: “Massa sem vida. Pensam que estão vivos. Acordam às seis da manhã para chegar às nove no trabalho. Vibram de alegria por ter uma hora de almoço. Chegam às dez da noite em casa e dormem. Ninguém deles ficará”. E emenda: “Não sou gótico, não suporto cemitério. Sou só um cara que vê beleza no nascer de mitos”. Sem pressa, vira o Corsa sedan branco em direção à avenida da Consolação.

Os cinco filhos de Xavier querem levar o pai a um psiquiatra. Nem tanto por causa da mania de acompanhar a morte de personalidades. Isso vem de longe, tanto que ninguém se espanta com o quarto do velho, cheio de pôsteres de artistas falecidos. Elvis está em destaque, bem acima da cama. É fato que a família quase enlouqueceu quando, em janeiro de 1982, depois de assistir à notícia de que Elis Regina havia morrido, ele se levantou do sofá para sumir por cinco longos dias. Quando voltou, trazia a caderneta.

Mas isso é passado. Hoje o que preocupa é que, dia após dia, Xavier pega mais bronca do mundo. Sobrou até para o melhor amigo, Flávio Bicudo, pasteleiro aposentado: “Ele apareceu aqui um dia e disse que não tinha mais amizade entre nós. Que eu era um ser humano vivo e imprestável”.

Não raro, Xavier agora cospe no prato do café-da-manhã, não aparece para almoçar, chega do trabalho com cheiro de pinga. A família suspeita de que ele não faz mais corridas pela cidade. Prefere andar de carro sozinho: do Sírio-Libanês para o Albert Einstein, do Einstein para o Hospital das Clínicas. Ele pouco tem falado com as pessoas. Só canta-rola: “Os sonhos mais lindos sonhei… De quimeras mil um castelo ergui…”

Quando o corpo de Paulo Autran se reduziu a cinzas no crematório da Vila Alpina, na zona leste de São Paulo, Xavier estacionou o táxi próximo da entrada, do outro lado da rua. Pela primeira vez, não ousou se aproximar. Cabisbaixo, ficou folheando a cadernetinha. Os dedos custavam a virar as páginas. Logo após o nome de Paulo Autran, havia meia dúzia de prováveis futuros mortos.

Mas, de acordo com Xavier, não é bom revelá-los. “Morte não se anuncia. A Morte se dá. Assim mesmo, com letra maiúscula”, explica.

Na última folha preenchida, um nome riscado. Vislumbra-se a primeira letra: X. Escreveu bêbado. Depois, sóbrio, rabiscou a injúria com a caneta especial e espalhou a essência artificial de uvas pelo carro: “Desse grupo, infelizmente eu sou só observador”.

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Trocando e-mails com Matt Barney

por Bruno Moreschi
Publicado no caderno 2, O Estado de S. Paulo (22/07/2007)

Preocupado em não ser protagonista de uma entrevista comum, o videoartista norte-americano propõe ao Estado um final de semana de conversas pela internet. O primeiro e-mail foi sucinto: “Aceito, mas gostaria de evitar a entrevista padrão, pergunta e resposta, você superior a mim, como o dono do mundo.”

“O que você sugere então?”

“Comece assim mesmo, como naturalmente tem de ser. E logo após eu me apresento. Oi, sou Matthew Barney, um ser humano.”

O aposto sugerido é breve demais. Não enfatiza a importância do trabalho do artista norte-americano mais importante da sua geração, como define o crítico de arte do New York Times Michael Kimmelman. Quando tentaram discutir sua obra no Brasil, em debate ocorrido em setembro de 2004 na Pinacoteca de São Paulo, o cineasta Carlos Adriano afirmou que a descrição verbal não consegue explicar as produções de Matthew Barney. Teve de citar Jean-Luc Godard: “A melhor crítica de um filme seria a realização de um outro filme.” Em 2006, nos estúdios de gravação de um dos vídeos de Barney, um figurante foi honesto: “Nunca tinha ouvido falar nele, mas é tipo um Picasso, certo?”

Sim, um Picasso com e-mail, disposto a trocar 16 mensagens, em três dias, sobre sua carreira. Matthew Barney nasceu em São Francisco, Califórnia, mas é em Nova York que reúne suas principais obras. Lá, seu trabalho está na galeria de Barbara Gladstone, uma espécie de mecenas contemporânea, proprietária de obras assinadas de vários artistas, entre eles, Anish Kapoor, Sharon Lockhart e Gary Hill. Em 1994, Barney começou sua produção mais conhecida: Cremaster, série de cinco episódios que mistura cinema com artes plásticas, fotografia e desenho. “Esses filmes são fundamentais para entender meu processo de criação. Tudo que crio está relacionado com uma espécie de sistema digestivo sensual que tem vida própria. É um outro planeta onde a fome sexual é o principal combustível.”

Sua explicação pára. No total, 17 horas de silêncio quebradas às 3h30, fuso de Nova York, com outra mensagem: “Talvez tenha sido infeliz na explicação anterior. Simplista demais. Meu trabalho não é uma relação tão direta ao sexo, porque, se esse ambiente fosse tão simples assim, eu não teria nenhum interesse em trabalhar com ele. Digamos que toda vez que revejo o resultado final dos cinco episódios, eu enxergo mais e mais elementos que comprovam isso que falei. Mas, é claro, sem generalizações.”

Na mensagem seguinte, Matthew Barney inverte os papéis de entrevistado e entrevistador ao me pedir uma lista das cenas mais marcantes de seus vídeos. Entre elas, cito o estranho homem rosa e de orelhas pontiagudas, que sapateia excitado ao ver no buraco do chão uma corrida de carro em que os veículos andam em lados opostos. Ou: A mulher loira de sapato plataforma está espremida embaixo da mesa enquanto reagrupa um conjunto de uvas que retirou de um buraco semelhante a uma vagina. Ou, ainda: A rainha, cercada por ajudantes japonesas, canta uma ópera e relembra o amado que partiu em um cavalo. Por fim, uma moça sussurra para seu homem: “Tell me… the secret of universe.” O pedido dela é atendido com uma relação sexual que ocorre no meio de abelhas.

Ele comenta, no próximo e-mail: “Engraçado. As cenas escolhidas por você não dizem o que quero realmente falar sobre a minha arte. Por isso, vamos na origem da palavra. Cremaster é um músculo que controla o sistema reprodutivo do homem. É algo automático, que ninguém consegue dominá-lo completamente. O que eu faço é tentar domar todo esse acaso e, logo após, filmar a tentativa.”

A conversa descompassada vai chegando ao fim. No campo ””assunto”” do penúltimo e-mail, vem o título “Eles jamais me assistiram” e ele mostra sua preocupação relacionada ao Brasil. “Eu fiz o filme De Lama Lâmina, no carnaval baiano de 2004. Foi a oportunidade de ver uma manifestação popular tão orgânica quanto surpreendente – e isso inclui todo o seu país. Mas o problema é que quase ninguém assistiu. Meus filmes estão nos museus, nas galerias, em poucos festivais. Quase nunca em cinemas onde as pessoas podem sentar e assistir. Sinceramente, nem sei se eles são feitos para isso. Entretanto, ao longo do tempo, o meu objetivo vai mudar, é uma decisão consciente minha. No recente Drawing Restraint 9, você percebe uma linearidade, tem mais cara de filme de circuito. E o tema não poderia ser mais universal: dois ocidentais, interpretados por mim e pela minha namorada Bjork, em uma embarcação baleeira japonesa.”

Assim, o e-mail termina. Bruscamente. Durante a manhã e a tarde de um domingo, Matthew Barney preferiu o silêncio na internet. Aparentemente, a conversa acabava ali, sem um final. Mas a madrugada trouxe o último comentário e a curta despedida do diretor: “Ask me no question. Ask me no question. And see you.”

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Vida em três séculos

por Bruno Moreschi
Publicado na revista Carta Capital (
8/04/2007)

Quem é o ser humano mais velho do mundo? Até o início de janeiro passado, a resposta seria: Sarhad Rashidova, nascido no Daguestão, república russa no norte do Cáucaso. Tinha 131 anos. Sarhad morreu e o posto, até manifestações em contrário, é ocupado agora por uma brasileira.

Escondida em uma casa de madeira, no distrito de Içara, ligado à cidade de Astorga, interior do Paraná, a 420 quilômetros de Curitiba, vive Maria Olívia da Silva. Ela tem 127 anos, comprovados na certidão de nascimento, e luta contra os efeitos do tempo. Maria não está nem aí se irá ou não constar do Guinness Book, o livro dos recordes, cujos técnicos iniciaram a verificação para comprovar se ela é mesmo a mais velha. A preocupação vital, no momento, é arrumar uma maneira de segurar a pouca comida que engole no debilitado estômago.

A longevidade de Maria impressiona pelas condições de vida precárias ao longo de quase 13 décadas. Nascida em 28 de fevereiro de 1880, segundo o documento de número 94064864 no registro geral mantido pela Secretaria de Segurança Pública do Paraná, Maria teve, e ainda tem, uma existência de privações. Físicas e morais. A atual certidão de nascimento, feita em 1976, está no cartório de Porecatu, livro A2, folha 5, número 272. Foram testemunhas o policial Helio Garcia e o agricultor Anésio Cogo, hoje com 67 anos. Cogo conhece Maria há muitos anos e foi chamado a confirmar a data de nascimento quando refizeram o documento. A primeira certidão sumiu após uma inundação de 1973 que atingiu o cartório de Itapetininga.

Corria o ano de 1892, quando Maria decidiu, aos 12 anos, fugir da casa da família em Itapetininga, a 170 quilômetros de São Paulo. O pai, sitiante violento, tinha o costume de surrar a filha. Em 8 de março daquele ano, o senhor João Camargo exagerou. Bateu no rosto de Maria com tição de lenha ao descobrir que ela havia transado com um homem mais velho no meio do cafezal. Grávida, a menina decidiu ganhar o mundo.

Dois anos depois de fugir da casa do pai, casou com um servente de obra. Ainda vivia em Itapetininga. O relacionamento acabou com uma carta de despedida que explicava que ele fugira, pois não era bicho para viver preso. Não passou muito tempo e Maria também foi embora. A sogra, proprietária da casa em que vivia, a expulsou dizendo que não queria nunca mais ver a mulher responsável pelo desaparecimento do filho. Quando se foi, estava grávida, como um terço das mães adolescentes que, após dois ou três anos, voltam a engravidar. Do interior de São Paulo ao Paraná, Maria passou o resto da vida a vender vassouras que ela mesma produzia.

No Paraná, casou-se novamente. O segundo marido, que Maria não consegue mais dizer o nome, a espancava brutalmente tanto quanto o pai. Quando não tinha motivo para bater, falava que o soco era garantia de punição para o próximo erro. Ele a engravidou três vezes. Um dos filhos nasceu prematuro quando a bolsa estourou no meio do espancamento. O marido morreu de cirrose. Sobrou a aliança de latão no dedo de Maria e a certeza de que nunca mais se casaria.

Apesar das agruras, Maria teimou e não só sobreviveu. Foi além dos padrões da época. Atravessou o século XX e entrou no XXI. Por causa da caridade de um pastor, do filho adotivo e das assistentes sociais da prefeitura de Astorga, pode-se dizer que a vida hoje não é tão miserável quanto antes. Em 28 de fevereiro, os vizinhos celebraram o aniversário de 127 anos. Teve salgadinho e o bolo foi cortado com dificuldade pela própria aniversariante. O presente veio depois, quando a prefeitura dedetizou a região e liquidou as moscas que a perturbavam. Ela reclamava bastante dos mosquitos.

Para chegar à casa de Maria, basta virar à direita depois da cruz branca na entrada do vilarejo e perguntar para o primeiro homem sentado no bar do seu Geraldo. “Não tem erro. É uma casa velha, logo ali.”

A porta está aberta. Maria Olívia da Silva é do tamanho de uma vassoura de palha das que fabricava para sobreviver. Passa o dia sentada em uma cadeira de fios azuis de plástico e segura uma fronha de bebê. Antes, o pano servia para enxotar as moscas. Hoje, utiliza-o para cuspir, já que, se engolir saliva, engasga. Se o corpo de Maria quase não se move, o mesmo não se pode dizer dos olhos. De um lado ao outro, enterrados no rosto carcomido, atentos ao que ocorre ao redor. Quando aparece visita, ela diz: “Você me desculpa pela blusa rasgada…”

Diz, não. Resmunga. A língua não tem força para ascender ao céu da boca. Sem a pronúncia do “da” e do “ta”, suas histórias ficam sempre mal contadas. A boca não cerra mais. Se cada frase não for seguida de cinco segundos de descanso, a garganta se fecha e o ar acaba. Quando perguntam se tem noção de que é a pessoa mais velha do mundo, fica aérea. Depois, acha graça. Conclui que merece estar viva mesmo, já que não foi nada fácil agüentar tudo o que passou.

A velhice recorde foi descoberta em 2004 pelo Radialista Aparecido Marcos, locutor da Rádio Astorga. Ele ouviu sobre a existência de uma mulher muito idosa na região e foi conferir. Olhou a carteira de identidade da velhinha, checou no livro Guinness e se deparou com o maior furo jornalístico de sua vida. Aparecido morreu de infarto em agosto de 2006.

O pessoal do distrito de Içara conta que, há três anos, um repórter estrangeiro a entrevistou. Maria queria contar sua história sofrida. Mas o repórter insistia para ela revelar o segredo da longevidade.

“Sei não”, dizia.

O jornalista insistiu tanto que ela falou a primeira coisa que veio à cabeça. Disse que o segredo era a banana que comia todos os dias. E assim ficou: Maria venceu um século de vida, por causa dos efeitos benéficos da banana brasileira.

Edna Pereira dos Santos, que cuida de Maria, ri quando conta a história. Ela ganha 5 reais por dia da prefeitura pelo trabalho, mas nunca sobra dinheiro para trocar o piso da própria casa. Os azulejos não são tão brancos como antes. A missão de Edna é impedir Maria de tropeçar, como aconteceu há quatro meses. O chinelo dobrou, ela bateu a clavícula no chão, quase morreu. “E pode acontecer de novo a qualquer momento. Com exceção do filho adotivo e de mim, ninguém dá bola para ela. Até o pessoal da igreja que construiu essa casinha melhor foi embora”, conta Edna.

O pastor aparece uma vez por semana para oferecer a eucaristia. Mas, tão logo ela engole, regurgita o pedaço de pão e o suco concentrado de uva. Nada pára no estômago de Maria. Por isso, ela seca a cada dia. No almoço, come duas colheres de sopa de arroz, um pedacinho de frango e meia banana. Antes da 1 da tarde, vomita. No lanche da tarde, bolacha e café. Vomita de novo. À noite, a outra metade da banana, que não dura uma hora no estômago. Faz questão de ressaltar que não vomita por desdém. Para curar uma úlcera no estômago, Maria toma um remédio com o composto ativo Omeprazol. Aliado a outro comprimido, à base de Glibenclamida, para diabetes, a sensação de vazio no estômago aumenta e ela se torna vítima de uma fome que não consegue jamais saciar. O desejo e a necessidade física de comer transformam os dias e as noites de Maria em pesadelo. Ninguém sabe dizer se os gemidos são de fome ou de dor.

Além do apoio espiritual do pastor, as assistentes sociais da prefeitura de Astorga, cidade vizinha de Içara, a visitam pelo menos uma vez por mês. Suzie Pucillo, a líder do grupo, conta que Maria está completamente lúcida, apesar da dificuldade de falar e ouvir. “Bem melhor do que muito rapazinho de 80 anos por aí”, brinca.

A filha “rica” mora em Maringá, a maior cidade da região, com 300 mil habitantes. A última visita ocorreu há quatro anos e não durou mais do que dez minutos. Dos 14 filhos, sobrou apenas o adotivo por perto. Aparecido da Silva sobrevive com os trocados que ganha ao consertar guarda-chuvas e sombrinhas. Segundo ele, os cinco filhos vivos esqueceram Maria. Até 2000, ainda apareciam esporadicamente. “Eles entram por essa porta e logo estão saindo. Parece que têm medo da velha”, conta Silva, enquanto manuseia cartelas do jogo do bicho, outro bico que contribui para o sustento.

Silva não abandonou a mãe adotiva, mas reclama da convivência. Diz que Maria é sistemática, quer ser independente e, quando não consegue fazer as coisas por conta própria, dá bronca no primeiro que vê.

Ela faz questão de ir sozinha ao banheiro. Passo a passo, atravessa a cozinha, a sala e entra no banheiro. Quando termina, pega a vareta ao lado do vaso sanitário para puxar a descarga. Se alguém entrar antes, ameaça bater com o pedaço de pau.

A passos lentos, Maria teima. Antes dizia que não morria porque precisava cuidar dos filhos. Depois, porque não iria morrer na velha casa de madeira. Mudou de lar, mas prometeu persistir até resolver um problema com o INSS, que suspendeu sua aposentadoria por achar que falecera.

Até recentemente, a luta era contra as moscas. Mas agora, vencidos os insetos, está agoniada. Precisa de um novo motivo para continuar.

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Herança de livramento

por Bruno Moreschi
Publicado na revista Carta Capital (
17/01/2007)

Sentado em um caixote de papelão, sob sol quente, às margens da rodovia em busca de uma carona até a cidade, seu Mulato é um senhor de 102 anos que luta por uma imensa área do tamanho de mil lagos do Ibirapuera, disputada há mais de um século por brancos e negros. Apesar da pele negra rasgada, ele ainda está lúcido, lembra das datas de nascimento dos filhos e diz em tom de desafio que, se for preciso, consegue fazer outros tantos. Documento vivo daquele conflito, ele é filho dos escravos que, em 1883, receberam as terras do Quilombo Mata Cavalo, 37 quilômetros de Cuiabá. A latifundiária Anna Tavares doou de papel passado os 15 mil hectares aos negros libertos, mas, como eles não tinham experiência para os negócios, logo se endividaram. Assim, velada, a escravidão voltou.

Os negros bem que tentaram pagar as dívidas entregando suas vacas de leite, mas os brancos aceitavam somente terra como forma de pagamento. Em pouco tempo, tudo voltou a ser propriedade dos ex-senhores de escravos. Hoje, apesar do vaivém da Justiça, os negros estão prestes a reconquistar a área – isso, é claro, se vencerem a ira dos brancos da região. Eles já embargaram temporariamente o reconhecimento do quilombo, fecharam a nascente do rio para impedir que a água chegasse aos negros, derrubaram com um trator a casa de um deles e são os principais suspeitos do desaparecimento do original da certidão de posse. Enquanto isso, o quilombo tenta sobreviver baseado no artigo 68 da Constituição brasileira, que diz que as terras das comunidades quilombolas são de seus descendentes negros.

Em Nossa Senhora do Livramento, a cidade mais próxima, a mobilização dos descendentes de escravos já produziu seus primeiros resultados. Há 50 anos, negro não podia ter terra em seu nome, pois a política local era dominada pelos brancos latifundiários. Hoje, negro até almoça com o prefeito: dois são finalmente vereadores na Câmara Municipal. Um deles é Ailton Arruda, 40 anos, 105 quilos, neto do seu Mulato, e que mal cabe no banco da frente do seu Vectra 96.

O vereador Ailton dirige em direção à casa de seu Mulato, onde está grande parte dos seus familiares, os porta-vozes de toda aquela gente. No casarão antigo, lotado de santos por todos os lados, a família vive de maneira simples, criando galinhas, porcos, patos e marrecos. No terraço, está o único telefone público dos negros da região. É lá que a filha do seu Mulato liga toda semana para o advogado e fica sabendo em que pé anda o rolo judicial das terras.

Além dessa missão, Gonçalina de Almeida também é responsável por guardar as cópias da papelada que corre em várias instâncias judiciais. No seu baú está o exemplar do Diário Oficial da União, de 10 de fevereiro de 2006, que demarca, aprova e reconhece o território negro. Ela guarda também a vitória temporária dos brancos: trata-se do documento do Ministério Público, que embargou, por falta de documentação, o processo de oficialização definitiva da área.

É terra que não acaba mais, não pense que termina ali, no casarão do seu Mulato. Vai muito além das janelas grandes e azuis, comidas pelo tempo. Chega até um local que seria um mato só, se não houvesse duas tendas forradas de palha seca. Ali está a escola das 113 crianças que vivem no Mata Cavalo. A professora Eva é quem cuida da molecada. Seu e-mail não carrega seu sobrenome, mas, sim, sua condição: evaquilombola@yahoo.com.br. Há poucas semanas, ela comprou um carro com o dinheiro que ganhou de um processo contra um fazendeiro que a chamou de negra safada. “Os brancos não aceitam que agora lutamos pelos nossos direitos. Queimaram o original da carta de posse só para atrasar ao máximo a troca de poder.”

A denúncia é repetida por todos os negros entrevistados. Nada comprovado. O que há são apenas quatro fatos. Um: a carta original de mais de 121 anos assinada pela senhora Anna Tavares estava no cartório da cidade na pasta de número 43. Dois: justamente essa pasta foi queimada em um incêndio de causa misteriosa — sobrou apenas a cópia no baú da Gonçalina. Três: a pasta anterior e a seguinte não sofreram um único arranhão. Quatro e último: o dono do cartório é Carlos Maciel, homem branco que vai perder suas terras se o Mata Cavalo for oficializado.

No cartório de Nossa Senhora do Livramento quem nos recebe é Kilza Maciel, a filha do fazendeiro. Ali não tem mato, calor, palha seca no teto. Tudo é clean e com clima agradável de ar-condicionado. Nas suas mãos está sua dissertação de mestrado em Direito, recentemente apresentada na Universidade de Várzea Grande, que tem como tema o conflito agrário na região. Grande parte do trabalho é uma reunião de anexos, como a carta de apoio aos fazendeiros assinada pelo senador Álvaro Dias e as notícias do Boletim do Sindicato Rural de Nossa Senhora do Livramento – alguns fazendeiros reclamam do constrangimento em ter de viver ao lado dos negros.

Kilza afirma que sua família nada tem a ver com o sumiço da carta de doação das terras. Em nenhum momento coloca em dúvida a existência do documento. Nega, porém, a legitimidade do papel com o argumento de que, em 1883, “negro não era gente”. Depois, emenda que não se considera, de maneira alguma, uma pessoa racista. “Meu pai é um branco trabalhador que não agüenta mais essa pressão toda”, explica.

Há cinco gerações os negros do Mata Cavalo tentam provar aos brancos que são gente como eles. Mas, a cada vez que chegam mais perto de conseguir, a reação branca cresce e o desafio se mostra gigantesco, bem maior que a área do Mata Cavalo, mais antigo que os 102 anos do seu Mulato. É tão complicado quanto apagar um Brasil arcaico que ainda persiste nos dias de hoje.

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Será o professor?

por Bruno Moreschi
Publicado na revista Carta Capital (27/09/2006)

Convicto do que fazia, ele deitou no gramado com as pernas esticadas e os braços abertos, formando uma cruz, para seu corpo secar até a desejada morte. Os moradores da pequena cidade de Bela Vista de Goiás, a 45 quilômetros de Goiânia, assustaram-se com a cena e chamaram a polícia. “Exerço meu direito de morrer. Estou tranqüilo, pronto para desencarnar”, explicou o homem magro, com educação. Ao seu lado, uma mala com 25 reais, poucas roupas dobradas e um bilhete com letras tremidas: “A quem interessar possa. Meu nome: Solitário. Não tenho familiares nem parentes nesta região do País”. Suas características físicas e intelectuais levam à suspeita de que ele seja o desaparecido e culto morador de rua de Florianópolis, conhecido como Professor, tema de uma Brasiliana (Professor, cadê você?), publicada há quatro semanas, na edição 411.

O primeiro médico chamado para tratar do Solitário lançou a polêmica: “Ele tem o direito de morrer e, por isso, não vou medicá-lo“. Foi necessário a procuradora da cidade, Sandra Garbelini, entrar com um pedido judicial para a juíza Vanessa Montefusco, que o aceitou prontamente. Os argumentos legais foram o direito à vida e a dúvida quanto à sua sanidade. “É até difícil nomear o que acontece. Não é eutanásia, tampouco greve de fome típica, já que não há motivo político“, explica a procuradora.

Hoje, o Solitário está em Goiânia, internado confortavelmente no quinto andar do Hospital de Emergência. Alguns médicos afirmam que perdeu cerca de 30 quilos, outros quantificam que ele está 51 quilos mais magro. Independentemente da pesagem correta, a verdade é que, de tão seco, seu corpo já não possui mais cintura, bíceps, peitoral… Vê-se apenas um filete de pele e osso suportando uma cabeça cadavérica. Quando raramente fala, custa para separar os lábios e deixa escapar um fio fino de saliva seca junto à voz. Responde objetivamente às perguntas e ponto final. Só fala um pouco mais quando uma das enfermeiras chega com um livrinho de adivinhações, charadas que sempre acerta. Com português impecável, não perdoa um deslize gramatical ou fonético. “Púdico, não. É pudico, por favor.”

O Solitário tem tevê no quarto e uma bandeja cheia de comida ao seu lado, exclusivas mordomias no hospital conhecido por ter a capacidade para 400 pessoas e atender 900, em dias normais. As assistentes sociais especulam a respeito do assunto discutido na cidade inteira: o Solitário é ou não o Professor de Florianópolis? A suspeita inicial veio de Luiz Felipe Fernandes, produtor da TV Anhanguera, retransmissora da Globo, que leu a reportagem de CartaCapital e comentou com amigos sobre a possibilidade.

As semelhanças são muitas. Entre elas, uma pequena cicatriz na orelha esquerda. Além disso, os dois visitaram os mesmos países e falam os mesmos idiomas, ao todo sete. O anônimo afirma que gosta de Florianópolis, mas que não ficou muito tempo na cidade. O tempo, porém, é relativo para ele, que diz conhecer poucoo Paulo para, em seguida, revelar que morou dez anos na capital paulista”. Quando perguntaram se é Carlos Weizel, o nome do Professor, ele sorri e responde: “Carlos, sim… mas agora é Carlos Schatamachi”. Até mesmo a Polícia Federal entrou na história e, depois de uma pesquisa, concluiu que a identificaçãoo existe. Na primeira vez que perguntaram se era o morador de Florianópolis, ele sorriu e fingiu dormir.

O taxista Araújo Lima, do aeroporto de Goiânia, compara as fotos do homem de Florianópolis e do Solitário e conclui: “Claro que é. É só ver os olhos”. Pensa diferente a assistente social Maria Auxiliadora: “Ah, acho que não é. É só uma pessoa comum querendo aparecer”. O médico Luciano Sardinha, diretor-geral do hospital, conjectura: “Pode ser, mas, talvez, por não querer ser reconhecido, ele nega”.

Entretanto, se um dia o Solitário resolver contar a verdade, a primeira pessoa a ouvi-la será Alba Genovesi, a baixinha loira, chefe do Serviço Social do hospital. Fã do seriado norte-americano C.S.I., sua profissão exige que seja uma boa detetive. Os funcionários da Polícia Civil, local onde ela diz que trabalhou em uma outra vida, brincam que um dia irão homenageá-la. Alba gosta de contar que conheceu o marido, o diretor da Associação de Xadrez de Goiânia, pela internet e que, custe o que custar, vai descobrir a verdade sobre o Solitário. Aproxima-se do misterioso, oferece rapadura em um copinho branco descartável, encosta sua mão pequena nos seus dedos-ossos e comenta que a relação entre os dois já se transformou numa de mãe e filho. Quando escuta isso, Solitário, como se ressuscitasse, esbugalha os olhos, vira o rosto para ela e sorri em silêncio.

Mas não é só Alba que busca a verdade sobre o Solitário. O caso virou notícia na região e o protagonista, celebridade instantânea. Carla Borges, repórter do jornal O Popular, foi a primeira a escrever uma reportagem. Depois da publicação da matéria, com direito a chamada na capa, o hospital não é mais freqüentado apenas pelos doentes deitados nas macas dos corredores. Jornalistas, principalmente os de televisão, enfiam seus microfones na boca de Alba, do médico Sardinha, do próprio autor da reportagem de CartaCapital, tudo como desculpa para, logo em seguida, invadir sem dó o quarto do ser raquítico que ainda se recupera de uma coletiva de imprensa ocorrida no dia anterior com Globo, SBT, Band e Record, essa última em uma tentativa frustrada de transmissão ao vivo no telejornal matutino nacional.

Quando os microfones miram na boca do Solitário, ele come lentamente um pedaço de pão e toma um copo de água. Finalmente, solicita com sua voz quase inaudível: “Os senhores… podem esperar eu comer?” Após alguns minutos, ele chama a atenção de um dos repórteres que havia feito uma pergunta sobre a sua preferência literária por Sócrates.

– Se você tivesse lido alguma coisa dele, não me perguntaria isso.

– Quem é o senhor?

– Não é necessário. Os senhores poderiam dominar um pouco a curiosidade.

– Mas é que somos jornalistas e somos curiosos.

– Há 51 dias… Minha missão terminou… Vim a Goiás pra morrer mais anonimamente e, até agora, não consegui.

– E por que o senhor tentou se matar? Desilusão?

– Na minha idade, não há desilusão. Há decisão.

– Qual seu nome completo?

Então, o repórter dispara a típica pergunta do jornalismo televisivo:

O que o senhor gostaria de falar para as pessoas que estão lhe assistindo?

– Fracassei. Vocês me forçaram.

– Mas é que as pessoas não querem que o senhor morra.

– Que gentileza…

O senhor acha que não existe beleza na vida?

– A beleza é… ser racional. O ser humano precisa aprender a ser gente, porque, até agora, ele só tem uma falsa racionalidade. Se A é B, E é C, então devemos concluir que A é igual a C.

Silêncio. Ninguém entende o cálculo. Ele sorri discretamente. Enquanto todos se preocupam com a sua identidade, ele busca algo que só alguém prestes a “desencarnar” enxerga. Na quinta-feira 12, o estado de saúde do Solitário piorou. Em uma crise de choro, Alba comentou com ele que seu medo é ter de enterrá-lo como indigente. Ele questionou com os olhos fechados: “Que diferença faz?”

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Professor, cadê você?

por Bruno Moreschi

Publicado na revista Carta Capital (19/09/2006)

Os que vivem na Praça XV, no centro de Florianópolis, concordam em uma coisa: o Professor é o homem mais culto do Brasil. Há três meses, depois de mais uma noite na escadaria da catedral, ele desapareceu misteriosamente. Confusos com o sumiço, seus companheiros elaboraram várias versões para explicar o caso.

O Professor é um morador de rua que se autodenomina revolucionário e que fala português, inglês, espanhol, francês, italiano, alemão, holandês, ao todo, sete idiomas. Antes de ter ido embora, ensinava essas línguas aos colegas, logo após o almoço, a divisão dos restos de pães doados pelo padeiro do outro lado da rua.

Os funcionários da antiga sede da Câmara de Vereadores costumavam vê-lo subir em uma das mesinhas de pedra construídas pela prefeitura e, sob seu domínio, possuir uma sala de alunos atentos. Estudantes-mendigos que também ouviam a respeito de Marx e Weber, lições que se transformavam, quase sempre, em intermináveis discussões, nas quais mestre e pupilos embebedavam-se com a cachaça de 1,50 real comprada em uma das mercearias do Mercado Público. Hoje, os goles, antes tomados para discutir filosofia, ajudam a esquecer a ausência do Professor e a criar diferentes hipóteses para seu sumiço.

Os amigos contam que, dois dias antes do seu desaparecimento, em uma noite de temperatura agradável, daquelas em que o cobertor xadrez é desnecessário, ele reuniu todos e, de dentro da sacola protegida pelo cão Babeco, retirou com cuidado uma pasta de capa cinza. Papéis com números, desenhos, uns triângulos de ponta cabeça. O Professor esclareceu do que se tratavam os cálculos escritos em próprio punho. A turma relembra o tom da sua voz mansa decrescendo a cada final de frase. Depois de alguns segundos de silêncio, retornava na suave cadência característica. “Aqui está a equação matemática, cuja solução será capaz de explicar… tudo nesta vida”, disse, procedido pelo som dos aplausos dos colegas.

Essa história, seguida do misterioso desaparecimento, fez com que a maioria dos moradores da praça acreditasse que o Professor foi embora em busca de um lugar mais tranqüilo, ideal para encontrar o resultado do problema. Mas ele não poderia simplesmente ter solucionado e fugido com a resposta? “Nunca! Isso nunca, porque, se o Professor achou o tudo, então, ele precisa voltar para levar a gente. Somos parte desse tudo aí. Quem pensa que a gente é nada, tá enganado!”, esbraveja Cica, a mãe da boneca sem braço que dorme no seu colo, seu bebê sempre comportado.

A última e talvez a única imagem de que se tem registro do Professor foi feita por um casal de ex-namorados do curso de Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina. Meses atrás, eles apareceram ali para realizar uma reportagem sobre os moradores de rua de Florianópolis. Nas filmagens, o Professor deu uma entrevista contando um pouco de sua vida. O episódio é o argumento para outra versão do sumiço, criada por João Polícia Federal, um morador de rua que assusta os pedestres do centro ao gritar ordem de prisão para qualquer um. Ele crê que o Professor se mudou, porque foi contratado, em sigilo, pela polícia norte-americana para capturar Osama bin Laden.

Para João, é óbvio como isso ocorreu: as autoridades dos Estados Unidos, que, como ele afirma, mapeiam tudo neste mundo, pegaram o sinal da antena que transmitia o programa produzido pelo casal da universidade e acharam genial aquele douto mendigo que falava frases em um impecável inglês. A expectativa dos defensores dessa versão é de que ele voltará assim que encontrar o líder da Al-Qaeda. Eles esperam que, com a recompensa em dólar pela captura de Bin Laden o Professor compre uma mansão para os moradores da Praça XV em Jurerê Internacional, o bairro de milionários em Florianópolis. “Aquela azul bem grande, do ladinho da casa da Gisele Bündchen”, diz João Polícia Federal, o único que recusará o convite para se mudar, pois, diferente do Professor, sua missão continua: proteger as pessoas dos pombos da cidade. “Preciso evitar que vocês encostem neles, porque, você sabe, esses bichos são extremamente venenosos.”

Na entrevista para a tevê, o Professor revelou que, na década de 50, foi comissário de bordo da Panair do Brasil, a empresa que desapareceu após uma canetada do ministro da Aeronáutica brigadeiro Eduardo Gomes, que cassou os direitos da aviação e transferiu suas rotas aéreas para a Varig e a Cruzeiro do Sul. Por causa desse emprego, 30 mil horas de vôo, as histórias do Professor se passam nos mais diferentes locais do mundo. Ele prefere, porém, aquelas ambientadas na Europa, afinal, o grande amor da sua vida chama-se Simone e vive em Paris.

Quem conta a história romântica é Francisquinha, a atual namorada do Professor. Ela faz parte do grupo que acredita que ele saiu em busca da Simone, “a mulher mais bonita do mundo”. Os dois conheceram-se no aeroporto Charles de Gaulle e bastou uma única troca de olhares para se beijarem durante longos 15 minutos e ficarem juntos por curtos dois anos. Depois, o Professor sumiu, como fez agora com os amigos da praça e, desde então, avisa a todas as mulheres que nunca mais vai amar alguém. “Com esse jeito sincero que dói, todas ficam apaixonadas”, diz Francisquinha, um pouco antes de reconstituir os seus últimos momentos com o Professor.

Na última noite em que foi visto na praça, ele agachou e beijou a sua testa. Eles estavam brigados, porque o Professor havia confirmado que sonhou a noite passada com Simone. Em um primeiro momento, Francisquinha gritou de raiva, mas logo se acalmou como sempre com a conversa calma do professor, suas ressalvas e um jeito carinhoso de tocar no ombro feminino, meiguice que Francisquinha faz questão de ressaltar, detalhe inesquecível para ela. Os dois dormiram juntos, dividindo um cobertor marrom que, provavelmente, algum dia, foi cinza. Ela lembra que, de madrugada, o Professor levantou-se e foi dormir na escadaria da catedral, certamente para acordar ao relento, na companhia dos pombos gordos, que tanto desesperavam João Polícia Federal. Ao nascer do sol, ninguém mais viu o Professor.

Foi um desespero total para todos, com exceção de seus dois melhores amigos, o Sanitarista e o Caminhoneiro, os únicos que ainda acham que o Professor volta. A despreocupação deles causa estranheza. É provável que os dois saibam da verdade. Eles desconversam quando alguém pergunta: “Onde está o Professor?” Mudam de assunto contando a história do homem que, logo ali, anda aos tropeços na calçada de pedra-sabão. Eles explicam que o cambaleante que murmura “Nossa Senhora”, dia e noite é filho de um importante militar de Santa Catarina com uma mulher que dormia embaixo do busto de Jeronymo Coelho, o fundador da imprensa catarinense. Seu apelido é Farinha, pois, quando teve a chance de furtar um supermercado, levou apenas um saco de farinha de mandioca.

Comeu tudo, foi levado ao hospital Celso Ramos, quase morreu desidratado. O Farinha não sabe a diferença entre as coisas, inclusive entre comida e dinheiro. Ele rasga cada nota de 1 real que recebe de esmola e engole pedacinho por pedacinho, ritual que pode levar um dia inteiro. É o único que não opina sobre o desaparecimento do Professor, apenas repete “Nossa Senhora” para todas as circunstâncias da vida.

Hoje, além da tristeza pelo cancelamento da aula a respeito de Marx, os moradores da praça sentem falta de um líder na equipe de dominós. É provável que perderão mais uma vez, a terceira quarta-feira seguida, para o grupo de operários que reforma a catedral. O Professor, que, além de poliglota, tem fama de grande estrategista nos jogos de dominó, faz falta. Eles estão cansados de esperar que o mestre decida voltar por conta própria. Por isso, decidiram divulgar ao mundo todo o seu verdadeiro nome: Carlos Weizel, nome confirmado pelo casal da universidade, que viu o RG do Professor no dia das filmagens.

O pessoal da praça teme esquecer das aulas, das histórias, dos idiomas e dos momentos em que o sol se punha e ele subia nas mesas construídas pela prefeitura, gritando que era o Napoleão daquela ilha invadida por ingleses. Ele pode voltar tranqüilo, ninguém vai cobrar explicações. Os pupilos recusam-se a acreditar numa última versão, fantasiosa demais para eles: a de que o Professor foi vender sanduíche natural nas dunas da Praia da Joaquina e, subitamente, sumiu como um bandoleiro qualquer.

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No show de Bethânia

por Bruno Moreschi
Publicado no blog Sampaist (13 de novembro de 2006)

Dois minutos antes de entrar no palco do Tom Brasil Nações Unidas neste final de semana, Maria Bethânia ajoelha no palco. Joelho com madeira. Uma, duas, três vezes, a testa encosta no chão. Na terceira, ergue os olhos fechados para cima e toma fôlego. Bethânia levanta-se e, ainda com o peito cheio de ar, invade seu agreste que pede água.

Com os aplausos da platéia, sua timidez aumenta mais do que a conversa anterior no camarim, quando sorria encabulada com os elogios. Mais aplausos para qualquer movimento das mãos, que sempre louvam alguém que só ela enxerga, para os pés que não sabem dançar e para o chumaço de cabelos brancos que, durante quase todo show, deixa de mostrar sua face na totalidade. Mesmo assim, Bethânia sorri tímida e sela uma ligação respeitosa com seu público: “Obrigado, senhores. Muito obrigado, senhores”.

As três noites, sexta, sábado e domingo, de show da Maria Bethânia homenagearam a água, tema do seu 31ª disco, Mar de Sophia. Filha de seu Jeca Veloso, funcionário dos Correios e Telégrafos e de Dona Cano, a menina que sempre quis ser atriz recebeu seu nome por causa da música de Nelson Gonçalves que dizia: “Maria Bethânia, tu és para mim a senhora do engenho”. A história é contada pelo seu irmão Caetano Veloso, artista que, ao contrário de Bethânia, trilhou um caminho diferente.

Ao contrário do irmão, Bethânia não quer estar em todos os lugares ou ter uma opinião polêmica para cada assunto. Sua crítica política é sutil, mas nem por isso pouco incisiva:

“Rujo como um leão faminto para tudo isto!
Arremeto como um touro louco sobre tudo isto!
Cravo unhas, parto garras; sangro dos dentes sobre isto!”

Grita e lembra que o poema de Álvaro de Campos foi escrito em 1915.

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