Monthly Archives: November 2008

Mulheres em alta

Elas prometem fazer a bolsa cair de forma mais elegante

por Bruno Moreschi
Publicado na revista piauí (11/08)

O coça-coça na virilha de um investidor na frente da Bovespa, a Bolsa de Valores de São Paulo, evidenciava a carência de fineza nessa crise mundial tão feroz. No início da tarde de uma segunda-feira de outubro, ensaiou-se uma esperança com a chegada de oito Marias, sete Anas, cinco Adrianas e outras 150 mulheres animadas em participar da conferência Mulheres em Ação. A aula gratuita, inaugurada há cinco anos e repetida em 102 ocasiões, ensina noções básicas do mercado financeiro ao público feminino.

Trajando figurinos mais incrementados do que calça e camisa sociais, as alunas chegaram ao prédio, tomaram o elevador até o 1º andar e se acomodaram no auditório. Assim que entraram, receberam uma cartilha: na capa, uma mulher de vestido laranja segura um be-bê numa das mãos e um celular e um palmtop na outra. Ana Luiza Genro, 32 anos, a primeira a aparecer, reprovou. “O ves-tido é péssimo.”

Antes de iniciar-se a aula, as amigas Suzane Gutemberg, Lindomara Franco e Joana Romano, todas de 26 anos, apostaram entre risos tímidos que o -professor seria um galã das finanças. Apesar de, aos 57 anos, José Alberto Netto estar mais para Alan Greenspan do que para Brad Pitt, o consultor da Bovespa diz que a quantidade de cursos ministrados o transformou em perito na mente feminina, num contexto econômico. Começou cheio de elogios.

Otimista (ou catastrófico, depen-dendo do ponto vista), Netto fez previsões de um futuro igualitário, em que homens e mulheres segurarão o telefone na frente de telões repletos de números. Apontou que a participação feminina entre os investidores ainda é de 18% no mundo e de 23% no Brasil, mas que desde 2002 o número cresce pelo menos dois pontos ao ano. “Vocês são pacientes por natureza, provavelmente esperarão um filho que demorará nove meses para nascer. E são rápidas na hora de agir; cuidam da criança e da carreira ao mesmo tempo. É o perfil perfeito para investir em ações”, ludibriou, na tentativa de conseguir liquidez entre as mulheres.

Feito o afago, a primeira parte do curso atentou para as noções básicas de economia doméstica. O exercício inicial foi separar as despesas mensais nas categorias “necessárias”, “não tão necessárias” e “supérfluas”. Netto exemplificou: “Aluguel é vital; salão de beleza toda semana, não.” Diante da lição de que “é preciso estar no azul para pensar em investir”, algumas alunas reclamaram, percebendo que, com a conta vermelha, não passariam no primeiro teste. Gabriella Lima, 32 anos, levantou a mão e questionou, em economês: “Podemos fazer um circuit break?” O nome dado à interrupção do pregão não foi o único termo técnico que ela usou durante o dia. Antes da aula, comentara às colegas que se definia como uma mulher independente, futura investidora do Tesouro Direto, investimento que recusa o intermédio de bancos.

Durante o intervalo, o consultor nem sequer saiu do auditório para conferir as novas do mercado financeiro. Cercado por seis mulheres aflitas, incapazes de sanar suas vidas econômicas, Netto passou o olho rapidamente na lista de uma delas. “Que sirva de exemplo para as demais: 400 reais em restaurantes podem muito bem ser substituídos por um convite aos amigos para que apareçam em casa munidos de bebida”, ensinou.

Passado o descanso de dez minutos, teve início a segunda parte da aula: a tão esperada lição de como atuar na Bolsa. Enquanto os slides mostravam organogramas complicados, a maioria das alunas anotava termos que julgavam importantes, acrescidos de explicações pessoais. Em um dos bloquinhos, “Conselho Monetário Nacional” veio acompanhado dos nomes “Mantega, Bernardo e Meirelles”. “Banco Central” foi resumido como “função: controlar a inflação”. Com capricho, Cinthia Alves, de 30 anos, pintou três asteriscos vermelhos ao lado da frase “Não colocar todos os ovos numa mesma cesta”, a máxima que prega a diversificação dos investimentos.

Netto bem que tentou fugir do tema crise mundial – na condição de funcionário da Bovespa, não pode comentar cenários ou sugerir ações que pareçam mais rentáveis. Porém, não resistiu diante de um crédito de 22 perguntas, tais como: “O Brasil será atingido?”, “Obama está preparado para vencer a crise?”, “É verdade que um homem se jogou do prédio da Bovespa?” Respondeu com um discurso genérico na tentativa de combater a especulação: “Não será o fim do mundo. Os bancos centrais estão agindo e a situação não será como a de 1929, meninas.” Palavras que soaram como alívio temporário a Claudia Toscana, 40 anos, que, mesmo não tendo um tostão em ações, se arrepia quando vê os brutamontes se acotovelando no pregão, na tentativa de salvar o mundo da derrocada.

Pontualmente às seis da tarde, uma hora após o fechamento do pregão, deu-se por encerrada a primeira e última aula. Decidida, Ana Luiza disse que apostará nos papéis ON da Petrobras, aqueles mais caros, que dão direito a voto em decisões importantes da empresa. Claudia foi mais cética. “Eles nunca conseguirão perfurar tão fundo para conseguir o novo petróleo”, argumentou, ao justificar a preferência por ações do Bradesco. Ponderadas, as amigas Suzane, Lindomara e Joana continuarão preferindo os trocados da poupança (cerca de 7% de valorização ao ano) a aplicar na Bovespa, que acumula perdas de mais de 40% em 2008.

Numa rodinha, Gabriella, a que pediu um intervalo ao professor, comentou com a propriedade de um investidor agressivo: “A culpa da crise é dos homens.” E diante do silêncio geral, usou números para provar a tese feminista: foi só elas aparecerem que, naquela segunda-feira, a Bovespa fechou em alta de 14,66%.

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Anonimato público

O ghost-writter da Câmara


por Bruno Moreschi
Publicado na revista piauí (11/08)

Edmílson Caminha aproveitou o período eleitoral, sinônimo de calmaria em Brasília, para passar férias em Paris. No mês passado, reassumiu o posto estratégico que lhe compete na Câmara dos Deputados. Há dezessete anos, ele organiza prós e contras acerca de assuntos variados, sempre em Times New Roman, tamanho 16, entrelinha dupla. Letras garrafais se justificam; o conteúdo produzido por Caminha e outros quinze redatores é dito em plenário no vozeirão de pelo menos metade dos 513 deputados federais, nada receosos com a apropriação.

À diferença do lero-lero exclamativo que compõe diariamente, o cearense Caminha é um homem pacato, de 56 anos, que avisa com modéstia que escreve o que mandam, com a cautela de apagar qualquer vestígio autoral. As paredes do seu gabinete são decoradas com fotos de Machu Picchu e Fernando de Noronha, de autoria própria, e a tela do seu computador, com a imagem de um panda a comer brotos de bambu, sugestão das filhas. “Elas dizem que nos finais de semana pareço com o urso, pois fico horas parado na mesma posição, deitado na rede, escutando jazz”, explica o redator parlamentar.

Além de dominar o português, posto à prova no concurso público de 1991, em que 8 mil candidatos concorreram a 160 vagas, Caminha é um especialista em tudo. Em uma única semana, escreve -sobre assuntos díspares, que vão da crise financeira norte-americana, campeã de pedidos no último mês, até a defesa de 1% das águas nacionais para uso dos -marisqueiros, defendida por Flávio Bezerra, do PMDB cearense, um dos únicos deputados a admitir a autoria alheia dos textos. Na quinta-feira, quase sempre o último dia de plenário, a retórica é mais amena: versa em torno de homenagens póstumas e festas regionais. Estudos es-pe-cíficos, como os projetos de lei, vão para os 164 téc-nicos especializados, que completam o quadro da consultoria legislativa.

Mesmo faltando três meses para o fim do ano, já é recorrente entre os redatores o consenso de que a placidez reinou nos mais de 900 discursos produzidos em 2008. A tendência começou com a eleição de Lula, quando o PT, sempre irado no palanque, se acalmou na situação, e foi agravada este ano pelas inúmeras lembranças ao centenário da imigração japonesa e aos 200 anos da vinda de dom João VI ao Brasil. “Sinto falta de um Artur da Távola”, lamenta Caminha, aludindo ao dia 27 de abril de 1992, quando o falecido deputado do PSDB carioca transformou a saudação à Espanha, escrita pelo redator, num discurso inflamado. “O caráter latino, a opulência verbal, o conceitismo barroco e a prevalência da emoção sobre a razão, admiravelmente representada na figura do Quixote, são marcas dessa cultura com que nos identificamos fortemente”, disse o deputado pausadamente e em bom-tom. “Ele apontava o in-dicador para o céu enquanto falava”, lembra, nostálgico, o redator.

Para manter a produção média de 100 discursos por ano, Caminha evita escrever antes de saber se o texto será lido no pequeno ou no grande expediente da sessão. O primeiro reserva míseros cinco minutos aos deputados e não lhes permite firulas. “Poucos homens conheceram tanto e tão profundamente o Brasil quanto Luís da Câmara Cascudo”, iniciou Caminha para um parlamentar paulistano, evitando a peroração e partindo logo para uma biografia sucinta do intelectual.

O discurso é outro quando proferido no grande expediente: são vinte minutos à disposição do político, com direito a aparte vindo dos colegas. “Penso que todo brasileiro deveria ter a oportuni-dade de conhecer a Amazônia, para só então poder dizer que conhece o Brasil”, digitou Caminha, para depois se deliciar descrevendo algumas árvores da floresta equatorial, como a andiroba, o mogno e o pau-rosa. Acertou em cheio: o preciosismo agradou ao deputado paraense.

Outra preocupação é saber para quem se escreve. No computador de Caminha, o currículo de Clodovil Hernandes, do PTC paulista, por exemplo, define-o como professor, comunicador, estilista, apresentador e cantor. Apesar do perfil multimídia, o redator conclui sem nenhuma maldade aparente: “Fica evidente que não dá para construir um discurso rebuscado para ele.”

Dilemas ideológicos não o perturbaram. Caminha perdeu a conta de quantos discursos produziu em favor do aborto, apesar de ser contrário à prática na maior parte dos casos. Semanas antes da destituição de Collor, mostrava-se habilidoso tanto para defender o ex-presidente quanto para criticar sua “ignominiosa conduta pública”. Se um deputado lhe pede um discurso ofensivo, até tenta acalmá-lo, mas, em caso de insistência, escreve sem temer a Justiça. Legalmente, o direito autoral recai sobre aquele que diz a peça oratória.

Para contrapor a falta de autoria, o ghost-writer público escreve suas próprias obras no silêncio de casa, como já fez em oito publicações. Leitor voraz (neste ano foram 39 livros, dentre os quais História Social do Jazz, de Eric Hobsbawn, e A Longa Viagem da Biblioteca dos Reis, de Lilia Schwarz), Caminha gosta de se corresponder com escritores de renome. Da troca de missivas com Carlos Drummond de Andrade, na década de 1980, nasceu o livro Drummond: a Lição do Poeta, orgulhosamente assinado pelo redator.

Cético, Caminha se define como uma sombra do meio-dia, expressão retirada da obra ficcional do diplomata Sérgio Danese, que relata a amizade entre um senador e seu preparador de textos. Ainda assim, o anonimato não parece incomodá-lo. Mesmo quando o presidente da Câmara, Arlindo Chinaglia, entoa um texto seu em plenário, ele se mostra resignado. “Sou apenas a mão que redige.”

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