A garota da caixa dos palitos Gina sorri. As comissárias de bordo também. A mãe perde a filha assassinada, mas se declara feliz na TV. Celebridades nunca choram. Vivemos uma época em que a felicidade é obrigatória. Estar triste pega mal? Então vamos escancarar os dentes.
por Bruno Moreschi
Publicado na ffwMag! (01/09)
Não fazemos feio diante das bochechas rosadas produzidas pelo sorriso pulha do senhor da aveia Quacker. Gina, a moçoila do palito de dente, nosso símbolo risonho da pop art tupiniquim, sugere o contentamento mais genuíno, movido pelo olhar doravante e pelos dentes numa perpétua brancura. Mas a verdade não condiz com tamanha felicidade. Zofia Burk, a modelo que emprestou o rosto à embalagem, estava assumidamente zangada naquela manhã de fotos de 1975. Suspirou ao ver que não convenceria a produção em deixar seus cabelos soltos. O fotógrafo almejava alguém tal qual outra colega imagética, a bucólica moça do leite condensado.
Meses depois, enquanto abarrotava o carrinho de supermercado, subitamente se defrontou com uma prateleira de alter-egos minimizados e sorridentes sob repetidas inscrições “contém 100 palitos”. Mais um suspiro. A verdadeira Gina não esperava que o ensaio fotográfico de meses atrás fosse usado para estampar caixinhas marrons de palitos. Para sempre ficou marcada pelo signo da simpatia deslavada e, convenhamos, pelo péssimo costume de palitar os dentes.
Hoje, com 62 anos, Zofia tenta combater a própria hipocrisia que produz em nossas dispensas. Religiosamente, há pelo menos uma década, nas manhãs de segundas-feiras, oferece sopa para os pobres famintos que se enfileiram na porta da igreja São Domingos, no bairro paulistano de Perdizes. “Verdade seja dita: olhando para os lados, não há tanto motivo para sorrir”, arremata sem nenhum resquício aparente de alegria.
Não é preciso as aspas do mais arauto dos terapeutas para se aperceber de que existe no mundo, em doses crescentemente cavalares, uma idealização inatingível do que é felicidade. Com a ajuda de paroxetina e similares, a ânsia é pelo bem-estar permanente, 24 horas por dia, sete vezes por semana, numa vida inteira de sorrisos públicos e choros discretos. A alegria perdeu a fineza. Virou Eldorado, achado tão simplório quanto fraudulento.
Para ajudar na pressão de que “é melhor ser alegre que ser triste”, a anatomia humana colabora no sorriso forçado. É mais fácil demonstrar alegria do que tristeza. Para franzir a testa é necessário movimentar 32 músculos faciais. Um sorriso precisa de apenas 28.
Não faltam regras para a vida de arco-íris. Tome nota, pobre tristonho: o primeiro é jamais odiar o próximo. Espetáculos públicos reforçam o maquinal perdão. Eloá morreu com um tiro na cabeça após ter sido mantida sob cárcere privado por mais de cem horas pelo ex-namorado Lindeberg Alves. Na primeira aparição pública à imprensa após a tragédia, a mãe da garota afirmou diante dos holofotes: “Eu perdôo esse garoto. Sei que minha filha está com Deus, e eu estou feliz (sic).”.
Já o equilíbrio se divide em duas faces. O físico precisa ser torneado em aparelhos de ginástica como o Leg Press 45 graus. Na angulação que o nome aponta, prensam-se as pernas entre lascas de pesos e o chão, numa posição que remete ao abate – a crença de que ele poderá ser postergado vem do reforço dos músculos. Por outro lado, a austeridade mental está em zunidos e pernas cruzadas num orientalismo borocoxô que aceita suco de capim e massagens rápidas de quinze minutos em saletas de shopping-centers.
De fato, não há muito tempo a perder. Mais importante do que entulhar a agenda repleta de apontamentos é vislumbrar a certeza de que se está, antes dos 30 anos, mais próximo do primeiro milhão. Realização profissional está longe de ser sinônimo de fazer o que se gosta. E vestir a camisa é literalmente cobrir-se de otimismo frente e verso com a camiseta verde-limão que a empresa distribui a todos os funcionários em data festiva. No peito: “Sou parte da empresa…”. Nas costas, tal qual uma facada, “… e sou feliz por isso”.
Nessa trajetória de milongas, sofrimento só mesmo no tom meloso de Celine Dion. Tristeza é sinal de depressão. Querer ficar sozinho, preocupação. Ironia, pedantismo. Humor negro, quase sempre passível de processo. E, nesse espectro de privações, algumas verdades, quase nunca combatidas, se repetem sistematicamente na crença de um Deus chamado humanidade. No oposto de Brás Cubas, que se orgulhava de não ter repassado o legado de nossa miséria, nos pipocamos numa multidão de faces sorridentes de dentes sempre brancos.
Pura balela. Três semanas depois que protagonizou o lançamento de um creme dental com partículas branqueadoras, o modelo Fred Lima, 28 anos, rompeu o namoro de dois anos e meio, pois descobriu que ela tinha outro. Chorou por dias seguidos. “Mas tive que voltar a sorrir”, conta resignado.
H.B., 31 anos, comissário de bordo de uma companhia área brasileira, também é paga para mostrar simpatia. “Não posso me identificar. Se descobrirem que reclamo, vou para o olho da rua”, diz a moça de cabelos louros cacheados, num sorriso que persiste até mesmo quando o critica.
Não que Helena (“está bem, o primeiro nome pode”) odeie o que faz. A seu ver, foi natural seguir a carreira da mãe, com a diferença de que talhares pesado de metal foram substituídos por garfinhos de plástico. Todavia, algo lhe irrita cada vez mais profundamente. Quando ocorre um vôo imprevisto, ela precisa refazer todo o plano de viagens dos próximos 15 dias, um trabalho cansativo que demanda cálculos atentos ao fuso horário.
Durante o vôo, a boca permanece larga, dentes brancos, batom vermelho cintilante, uma única migalha de purpurina próxima ao canto esquerdo do lábio superior. Se o passageiro olhar bem para seu rosto, coisa que nunca de fato aconteceu, vai reparar que a máscara não é disfarce infalível. Sob o carma da felicidade, Helena não destoa muito de um retrato discretamente desolador clicado pela fotógrafa norte-americana Sharon Lockhart. Os personagens que enquadra são gente comum, nem sorridentes, nem raivosos, mas que carregam sempre o olhar distante, perdido num emburrar verdadeiramente inerente. Sem conseguir me convencer, Helena promete que um dia irá tomar uma atitude. Anunciará calmamente os dizeres “no caso de falta de ar, máscaras de oxigênio cairão automaticamente”. Vai reunir fôlego. E, de pulmões cheios, gritará: “%^PQP%*&!!”
Poucos de fato enfrentam a alegria imposta tal qual um Bernard Marx, do livro Admirável Mundo Novo, escrito por Aldous Huxley e que conta a história de um mundo em que a felicidade virou uma pílula chamada Soma. A maioria insiste em sorrir como fez até o último clique a atriz austríaca Romy Schneider. Morta aos 43 anos, oficialmente por parada cardíaca, ela vivia há anos uma depressão profunda causada pelo suicídio do primeiro marido e pela trágica morte do filho, que morreu com 14 anos ao pular do portão e ser perfurado pela ponta de uma das grades. No artigo que fala sobre a atriz e sua insistência em esconder a tristeza, o jornalista Ruy Castro não poderia achar título mais pertinente: “Máscara de felicidade removível com lágrimas”.
Aos que se rebelam, não lhe sobram mais a discrição de Guy Montag, o bombeiro que fazia vistas grossas para os livros de Walt Whitman e William Faulkner, proibidos no mundo tão perfeito quanto angustiante do filme e livro Fahrenheit 451. Os corajosos agora viraram peritos em estripulias circenses dignas de Paris Hilton. Será uma atitude desesperada motivada pelo desespero heróico de avisar que o mundo caminha na direção errada? Mais provável que seja efeito do pileque.
Quando sustentava o sorriso maroto, Britney Spears cantava I’m not a girl, not yet a woman na ingenuidade vestida de cinta-liga. Para alguém de ancas tão frágeis, o peso lhe foi insuportável. Assumiu o refrão got lost in this game, (oh baby, baby) e Oops!… I did it again virou sinônimo de idas e vindas em clínicas de reabilitação. Casou ligeiro com um amigo, desquitou horas depois, perdeu a guarda dos filhos, cansou de aparecer em fotos sem calcinha, apostar rachas com fotógrafos urubus. Tudo para, então, protagonizar a cena síntese desse mundo plastificado. Com risadinhas, entrou num salão de beleza e raspou a cabeleireira na máquina zero. Saiu com cara do brinquedo assassino Chucky e berrou para os paparazzos afoitos por uma declaração bombástica: “A merda é de vocês!”
Em contraponto a esta rara demonstração de sinceridade, a ingenuidade e conformismo de nossa Sandy chegam a espantar. “Apesar de me incomodar, entendo que no fundo, os fãs querem saber da minha vida pessoal para saberem se estou mesmo feliz”, disse numa entrevista para o jornal O Globo.
No momento da escrita deste parágrafo, exatamente 43 pessoas aparecem online na minha lista do Windows Live Messenger. No espaço reservado para escrever alguma frase após o nome, pelo menos meia dúzia o utilizam para divulgar a alegria. Mal sabem de que seguem a risca o que a própria página de ajuda da Microsoft sugere para o uso desse recurso. Em tom publicitário: “O lugar ideal para você divulgar seu estado de espírito, a novidade legal do dia, a pessoa que você ama!”.
Bruno diz:
Por que tanta alegria?
Ivi – E o dia nasceu feliz! diz:
Oi. Como assim?
Bruno diz:
A frase depois do seu nome.
Ivi – E o dia nasceu feliz!!! diz:
Ah… hehe… sei lá!
Bruno diz:
?
Ivi – E o dia nasceu feliz!!! diz:
É meio que costume colocar…
Já é tradição a vencedora do Miss Universo aflorar do maiô apertado o juramento recheado de otimismo em proporções mundiais: “Nós, as jovens mulheres do universo, acreditamos que as pessoas de todos os lugares buscam a paz, tolerância e o entendimento mútuo entre si. Nós difundiremos esta mensagem em todo caminho em que pudermos, onde quer que estejamos.”
Pois falemos de paz. Enquanto os ataques insistem em acontecer no Iraque, os funcionários da sede da ONU finalmente entraram num consenso digno de nota. Após reuniões que perpassaram dois anos, a intervenção artística no teto do prédio foi aprovada por unanimidade. O artista plástico espanhol Miquel Barceló costuma se trancafiar no recinto e ficar dias imerso no trabalho, numa atitude que a imprensa já compara com o isolamento de Michelangelo na Capela Sistina. A diferença é que, diferente do taciturno artista italiano que rejeitava ajudantes, Barceló insiste em contar com ajuda de 150 homens de confiança, todos hospedados em hotéis cinco estrelas de Genebra. Custo estimado da obra de arte: 20 milhões de euros, 500 mil provenientes de um fundo de ajuda ao desenvolvimento. “Quero falar da felicidade entre os povos”, Barceló afirma sem receio das críticas.
Assumimos, sem medo de parecermos macabros, estarmos num mundo onde o sorriso tende a ser só deformação. Parece restar uma (discreta) esperança. Curiosamente, vinda de outro clássico do cinema. Em Tempos Modernos, Charles Chaplin insiste que, apesar de tudo, precisamos sorrir. “Mesmo que o coração estiver partido, mesmo que de fato a dor esteja grande”, diz a canção Smile. Não pense, porém, que o sorriso é o mesmo de Gina. Este é assumidamente fragmentado, demasiadamente humano, no atino de que a alegria completa é tão somente utopia.