Monthly Archives: February 2009

O semeador de imagens

Autor de registros desapressados no interior do Paraná e esquecido por anos, Haruo Ohara foi um dos mais importante fotógrafos do Brasil na segunda metade do seculo passado. Suas imagens servem de inspiração a um mundo que esqueceu a maturação das coisas

por Bruno Moreschi
Publicado na revista BRAVO! (01/09)

Fotografia e terra eram sinônimos para Haruo Ohara. Enquanto cuidava do café no solo vermelho do interior do Paraná, o imigrante que chegou ao Brasil aos 17 anos registrava, com a paciência de um agricultor, o florescer de um novo mundo. De 1940 a 1970, ele produziu um acervo de 18 mil fotografias, doado no ano passado ao Instituto Moreira Salles. O objetivo era sempre o mesmo: retratar os imigrantes que transformaram, em pouco mais de meio século, uma vastidão de mata em cafezais. Até 1 de março na Galeria de Arte do Sesi, a coletiva Japão: Mundos Flutuantes reserva um dos cantos para o trabalho de Ohara – que morreu ao 90 anos sem o reconhecimento que merecia. Nas paredes marrons tranquilas da galeria, vê-se a obra do fotógrafo que, só agora, resgatamos do esquecimento.

Horizonte infinito – De manhã, um casal de agricultores vai colher café (1940). Entre as marcas do trabalho de Ohara, está o uso de silhuetas anônimas ante o céu vasto e preponderante. O louvor do trabalho fica evidente na transformação da peneira em auréola sagrada sobre a cabeça da lavradora.
Momento certo – Maria, filha de Ohara, e Maria Tomita, sobrinha (1955). Influenciado por Henri Cartier-Bresson, o artista usava familiares para treinar o saque rápido do clique, tão aprimorado nos fotoclubes da região. À diferença de Yutaka Yasunaka, profissional que fotografou as transformações gerais de Londrina, Ohara almejava o registro dos detalhes.
Fotógrafo tardio – Haruo Ohara em bambuzal no sítio em Londrina. O imigrante chegou ao Brasil em 1927 para trabalhar como agricultor no interior de São Paulo e, seis anos mais tarde, comprou um terreno no norte do Paraná. Meia década depois, começou a registrar as primeira imagens do local.
A lama e o homem – Rapaz tenta se livrar do lamaçal em Londrina (1950). Apesar de a maioria das fotografias de Ohara registrar a vida campestre, suas lentes também mostravam a formação da cidade. Num solo ainda instável, a dificuldade em impor a vontade humana.
Novo mundo – Homens observam o que sobrou do cafezal após geada de 1940. Apesar de a natureza clicada por Ohara ser impotente, os homens nunca parecem insignificantes. Mesmo pequeninos em relação à paisagem, mostram o atrevimento intrínseco aos bons exploradores.
Imagens para si – Maria, filha do artista, brincando no canteiro de flores (1950). Até hoje Ohara é chamado de “fotrógrafo amador”. Fotos bem elaboradas como esta mostram que, no seu caso, o aposto não é sinônimo de incompetente. O termo ficou apenas porque ele evitava vender suas imagens.

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A escala humana

Moldado por Oscar Niemeyer, o gosto brasileiro acha que arquitetura é sinônimo de gigantismo. Isay Weinfeld, o mestre dos espaços intimistas, desafiou essa máxima – e se tornou a nova estrela das pranchetas

por Bruno Moreschi
Publicado na revista BRAVO! (01/09)

Na defesa da singularidade, Isay Weinfeld diminuiu a escala. Até então, como crença incontestável, o gigantismo geográfico do Brasil inspirou uma arquitetura que flertava com o monumental, erguida por nomes como Oscar Niemeyer, João Batista Vilanova Artigas e Paulo Mendes da Rocha. Agora, pela primeira vez, um arquiteto brasileiro se destaca por romper com a tradição e pensar o espaço de maneira intimista. “Minha luta é contra a pretensão”, diz Weinfeld, resumindo suas ambições.

Cada vez mais, o arquiteto paulistano de 56 anos cativa olhares mundo afora. Em 2008, o projeto arquitetônico de Weinfeld para a Livraria da Vila, no bairro paulistano dos Jardins, recebeu menção honrosa em duas importantes premiações, a norte-americana Spark! e o World Architecture Festival, de Barcelona. A ideia de fazer uma livraria cujas portas são prateleiras de livros que se abrem simulando o virar de páginas embasbacou a imprensa européia. Palavras do jornal britânico The Times: “Este brasileiro constrói casas. Até mesmo quando o projeto é uma livraria, loja ou hotel de luxo, seu apreço pelo ambiente familiar reina absoluto”.

O quarto volume do guia Architecture Now (editora Taschen, 575 páginas) traz Weinfeld na companhia de nomes consagrados como o inglês David Chipperfield, o holandês Rem Koolhaas, além do próprio Niemeyer. “Ele está entre os meus dez arquitetos favoritos”, enaltece o organizador da publicação, o historiador de arte francês Philip Jodidio. Diante do crescente reconhecimento, o elogiado garante que está feliz com sua pequena equipe de 20 arquitetos — o escritório de Rem Koolhaas, por exemplo, tem cem profissionais.

Notável pelo projeto no espaço privado, Weinfeld faz obras que jamais foram vistas, quanto mais compreendidas, por quem não faz parte do seleto grupo que visita as dependências de seus clientes abonados. Entre tantos, um milionário que lhe pediu uma mansão no paradisíaco arquipélago das Ilhas Virgens caribenhas. Daí a importância do livro Isay Weinfeld, lançado pela Bei Editora, primeira de duas publicações que pretendem catalogar seus principais projetos. Em 200 fotografias, é possível perceber a unicidade de 15 casas, 11 delas em São Paulo, duas no Guarujá, uma em Brasília, além do restauro de uma fazenda em Campinas. Quando a editora lhe pediu textos para a publicação, foi sucinto: “Tive enorme prazer em projetar estas casas. Até onde sei, os proprietários estão felizes nelas. Isto não é pouco. Isto já me basta”.

Tédio e Deselegância
Numa comedida camisa de listras azuis, Weinfeld entra no Hotel Fasano de São Paulo. Contempla a própria criação. Um prédio de 64 quartos numa área de 10.308 metros quadrados. Num claro contraponto a tantos “hotéis de butique” passageiros, este foi feito para durar. Fugindo do espaço central, preenchido por sofás caramelo à frente, bar disfarçado ao fundo e lareiras nas paredes laterais, o arquiteto prefere sentar-se a uma esquecida mesa redonda de canto.

Weinfeld é um homem que agradece três vezes o café trazido pelo garçom. Poucas coisas o irritam mais do que a falta de bons modos das pessoas. Tempos atrás, um casal almejava morar numa casa pensada por ele. Os três se reuniram uma, duas, três vezes. Por fim, ficou insuportável para Weinfeld aguentar os frequentes palavrões do casal. Sentenciou um não à proposta de trabalho, na certeza de que jamais seria o construtor de um lar de desavenças. Sua posição privilegiada entre os arquitetos brasileiros faz com que possa soltar negativas. No ano passado, um milionário árabe, encantado com a foto de uma casa que Weinfeld projetou, fez questão de ligar pessoalmente para ele. Pagaria quanto fosse preciso para uma residência idêntica. Como sempre faz, Weinfeld tentou convencê-lo a ter uma casa pensada sob medida. Um lar único no mundo, como são as pessoas. “Eu quero essa”, rateou o abastado. O arquiteto caiu fora.

Ao falar de suas influências, Weinfeld não cita outros arquitetos. Ele prefere gente de outras áreas, como cinema e música. “Quero fazer casas como Kubrick fez filmes. Uma grande ficção científica, um grande terror, um grande filme de guerra.” Como o cineasta americano, ele tem horror à repetição. Quando o Hotel Fasano foi inaugurado, choveram convites para que fizesse outras obras no mesmo estilo. “Qual a razão em se repetir?”, indagava-se antes da recusa. Em 2006, Weinfeld desafiou a si mesmo projetando a boate paulistana Disco. Em novos golpes contra o tédio, sonha em projetar um posto de gasolina e um bordel. Sem brincadeira, garante.

Para Weinfeld, são pessoas que precisam ser minuciosamente analisadas — no sentido psicanalítico do termo. Vencida a etapa de afeição com o cliente, o arquiteto se reúne várias vezes com ele na ânsia de espicaçar algum desejo contido que possa guiar o futuro projeto. Dono da casa de show Credicard Hall, em São Paulo, o empresário Fernando Altério sempre gostou de amigos por perto. Também do fascínio de estar perto de um palco. Desse modo, a intitulada Casa Suíça tem o primeiro andar livre de divisórias e se assume como um lugar para o convívio humano, onde a música flui sem dificuldade. O pé-direito de sete metros lhe dá a grandiosidade de um espetáculo. O detalhe fica por conta das luzes direcionadas ao centro. Muito perto de romper a tênue linha da cafonice, ergue-se uma casa-palco elegante e grandiosa.

Como na psicanálise, existem os desejos mais explícitos e os que emergem só depois de várias sessões. Foram necessárias muitas conversas para que um dos clientes de Weinfeld descobrisse que queria sentar no sofá e encostar as mãos na piscina, como acontece na Casa Marrom, cuja foto abre esta reportagem. No caso do marchand e sua mulher, fotógrafa, o desejo já era sabido: um recanto onde pudesse viver em harmonia com a vasta coleção de obras de arte. Para outro casal, esse afeito à discrição, uma sala cercada de cortinas translúcidas. Na casa do jovem solteiro, uma escada liga a sala ao quarto. Na parede acima dos degraus, a sugestiva plaquinha “Sex”.

De costas para São Paulo
Isay Weinfeld nasceu em São Paulo, mas sua arquitetura se desenrola de costas para a cidade. Pode-se ter uma idéia de sua visão da capital paulista assistindo-se a Fogo e Paixão, de 1988 — incursão de Weinfeld pelo cinema, como roteirista e diretor, em parceria com outro arquiteto, Márcio Kogan. O filme lança um olhar satírico sobre a cidade a partir do passeio de um ônibus turístico numa metrópole sem atrações turísticas. Weinfeld odeia as calçadas quebradas de São Paulo e evita andar a pé um único quarteirão. Não por acaso, as fachadas de suas construções são fechadas como rostos ranzinzas. Para terror de outros arquitetos, não almeja a arquitetura que se integre ao exterior quando o “lá fora” é uma cidade que, no ano passado, registrou aumento de 18% nos roubos de residências.

O garçom retira o café, e Weinfeld mais uma vez agradece insistentemente. Quando o assunto envereda para outros temas que não a arquitetura, seu olhar desfaz o tédio e brilha. Numa empolgação quase adolescente, garante que o show que o Radiohead apresentará em março no Brasil é um dos melhores que já viu na vida. O que significa muito para alguém que costuma viajar para onde a banda inglesa esteja. A canção Everything in Its Right Place, do álbum Kid A, de 2000, poderia ser a trilha sonora de sua obsessão pelos detalhes. Antes de se retirar do lobby do Fasano, fita as pequenas letras de um logotipo do hotel ao lado do banheiro. Ao ver que os contornos continuam sutis, vai embora satisfeito.

O Livro
Isay Weinfeld, org. Raul A. Barreneche. Bei Editora, 336 págs., R$ 160.

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Eu rio, sim!

A garota da caixa dos palitos Gina sorri. As comissárias de bordo também. A mãe perde a filha assassinada, mas se declara feliz na TV. Celebridades nunca choram. Vivemos uma época em que a felicidade é obrigatória. Estar triste pega mal? Então vamos escancarar os dentes.

por Bruno Moreschi
Publicado na ffwMag! (01/09)

Não fazemos feio diante das bochechas rosadas produzidas pelo sorriso pulha do senhor da aveia Quacker. Gina, a moçoila do palito de dente, nosso símbolo risonho da pop art tupiniquim, sugere o contentamento mais genuíno, movido pelo olhar doravante e pelos dentes numa perpétua brancura. Mas a verdade não condiz com tamanha felicidade. Zofia Burk, a modelo que emprestou o rosto à embalagem, estava assumidamente zangada naquela manhã de fotos de 1975. Suspirou ao ver que não convenceria a produção em deixar seus cabelos soltos. O fotógrafo almejava alguém tal qual outra colega imagética, a bucólica moça do leite condensado.

Meses depois, enquanto abarrotava o carrinho de supermercado, subitamente se defrontou com uma prateleira de alter-egos minimizados e sorridentes sob repetidas inscrições “contém 100 palitos”. Mais um suspiro. A verdadeira Gina não esperava que o ensaio fotográfico de meses atrás fosse usado para estampar caixinhas marrons de palitos. Para sempre ficou marcada pelo signo da simpatia deslavada e, convenhamos, pelo péssimo costume de palitar os dentes.

Hoje, com 62 anos, Zofia tenta combater a própria hipocrisia que produz em nossas dispensas. Religiosamente, há pelo menos uma década, nas manhãs de segundas-feiras, oferece sopa para os pobres famintos que se enfileiram na porta da igreja São Domingos, no bairro paulistano de Perdizes. “Verdade seja dita: olhando para os lados, não há tanto motivo para sorrir”, arremata sem nenhum resquício aparente de alegria.

Não é preciso as aspas do mais arauto dos terapeutas para se aperceber de que existe no mundo, em doses crescentemente cavalares, uma idealização inatingível do que é felicidade. Com a ajuda de paroxetina e similares, a ânsia é pelo bem-estar permanente, 24 horas por dia, sete vezes por semana, numa vida inteira de sorrisos públicos e choros discretos. A alegria perdeu a fineza. Virou Eldorado, achado tão simplório quanto fraudulento.

Para ajudar na pressão de que “é melhor ser alegre que ser triste”, a anatomia humana colabora no sorriso forçado. É mais fácil demonstrar alegria do que tristeza. Para franzir a testa é necessário movimentar 32 músculos faciais. Um sorriso precisa de apenas 28.

Não faltam regras para a vida de arco-íris. Tome nota, pobre tristonho: o primeiro é jamais odiar o próximo. Espetáculos públicos reforçam o maquinal perdão. Eloá morreu com um tiro na cabeça após ter sido mantida sob cárcere privado por mais de cem horas pelo ex-namorado Lindeberg Alves. Na primeira aparição pública à imprensa após a tragédia, a mãe da garota afirmou diante dos holofotes: “Eu perdôo esse garoto. Sei que minha filha está com Deus, e eu estou feliz (sic).”.

Já o equilíbrio se divide em duas faces. O físico precisa ser torneado em aparelhos de ginástica como o Leg Press 45 graus. Na angulação que o nome aponta, prensam-se as pernas entre lascas de pesos e o chão, numa posição que remete ao abate – a crença de que ele poderá ser postergado vem do reforço dos músculos. Por outro lado, a austeridade mental está em zunidos e pernas cruzadas num orientalismo borocoxô que aceita suco de capim e massagens rápidas de quinze minutos em saletas de shopping-centers.

De fato, não há muito tempo a perder. Mais importante do que entulhar a agenda repleta de apontamentos é vislumbrar a certeza de que se está, antes dos 30 anos, mais próximo do primeiro milhão. Realização profissional está longe de ser sinônimo de fazer o que se gosta. E vestir a camisa é literalmente cobrir-se de otimismo frente e verso com a camiseta verde-limão que a empresa distribui a todos os funcionários em data festiva. No peito: “Sou parte da empresa…”. Nas costas, tal qual uma facada, “… e sou feliz por isso”.

Nessa trajetória de milongas, sofrimento só mesmo no tom meloso de Celine Dion. Tristeza é sinal de depressão. Querer ficar sozinho, preocupação. Ironia, pedantismo. Humor negro, quase sempre passível de processo. E, nesse espectro de privações, algumas verdades, quase nunca combatidas, se repetem sistematicamente na crença de um Deus chamado humanidade. No oposto de Brás Cubas, que se orgulhava de não ter repassado o legado de nossa miséria, nos pipocamos numa multidão de faces sorridentes de dentes sempre brancos.

Pura balela. Três semanas depois que protagonizou o lançamento de um creme dental com partículas branqueadoras, o modelo Fred Lima, 28 anos, rompeu o namoro de dois anos e meio, pois descobriu que ela tinha outro. Chorou por dias seguidos. “Mas tive que voltar a sorrir”, conta resignado.

H.B., 31 anos, comissário de bordo de uma companhia área brasileira, também é paga para mostrar simpatia. “Não posso me identificar. Se descobrirem que reclamo, vou para o olho da rua”, diz a moça de cabelos louros cacheados, num sorriso que persiste até mesmo quando o critica.

Não que Helena (“está bem, o primeiro nome pode”) odeie o que faz. A seu ver, foi natural seguir a carreira da mãe, com a diferença de que talhares pesado de metal foram substituídos por garfinhos de plástico. Todavia, algo lhe irrita cada vez mais profundamente. Quando ocorre um vôo imprevisto, ela precisa refazer todo o plano de viagens dos próximos 15 dias, um trabalho cansativo que demanda cálculos atentos ao fuso horário.

Durante o vôo, a boca permanece larga, dentes brancos, batom vermelho cintilante, uma única migalha de purpurina próxima ao canto esquerdo do lábio superior. Se o passageiro olhar bem para seu rosto, coisa que nunca de fato aconteceu, vai reparar que a máscara não é disfarce infalível. Sob o carma da felicidade, Helena não destoa muito de um retrato discretamente desolador clicado pela fotógrafa norte-americana Sharon Lockhart. Os personagens que enquadra são gente comum, nem sorridentes, nem raivosos, mas que carregam sempre o olhar distante, perdido num emburrar verdadeiramente inerente. Sem conseguir me convencer, Helena promete que um dia irá tomar uma atitude. Anunciará calmamente os dizeres “no caso de falta de ar, máscaras de oxigênio cairão automaticamente”. Vai reunir fôlego. E, de pulmões cheios, gritará: “%^PQP%*&!!”

Poucos de fato enfrentam a alegria imposta tal qual um Bernard Marx, do livro Admirável Mundo Novo, escrito por Aldous Huxley e que conta a história de um mundo em que a felicidade virou uma pílula chamada Soma. A maioria insiste em sorrir como fez até o último clique a atriz austríaca Romy Schneider. Morta aos 43 anos, oficialmente por parada cardíaca, ela vivia há anos uma depressão profunda causada pelo suicídio do primeiro marido e pela trágica morte do filho, que morreu com 14 anos ao pular do portão e ser perfurado pela ponta de uma das grades. No artigo que fala sobre a atriz e sua insistência em esconder a tristeza, o jornalista Ruy Castro não poderia achar título mais pertinente: “Máscara de felicidade removível com lágrimas”.

Aos que se rebelam, não lhe sobram mais a discrição de Guy Montag, o bombeiro que fazia vistas grossas para os livros de Walt Whitman e William Faulkner, proibidos no mundo tão perfeito quanto angustiante do filme e livro Fahrenheit 451. Os corajosos agora viraram peritos em estripulias circenses dignas de Paris Hilton. Será uma atitude desesperada motivada pelo desespero heróico de avisar que o mundo caminha na direção errada? Mais provável que seja efeito do pileque.

Quando sustentava o sorriso maroto, Britney Spears cantava I’m not a girl, not yet a woman na ingenuidade vestida de cinta-liga. Para alguém de ancas tão frágeis, o peso lhe foi insuportável. Assumiu o refrão got lost in this game, (oh baby, baby) e Oops!… I did it again virou sinônimo de idas e vindas em clínicas de reabilitação. Casou ligeiro com um amigo, desquitou horas depois, perdeu a guarda dos filhos, cansou de aparecer em fotos sem calcinha, apostar rachas com fotógrafos urubus. Tudo para, então, protagonizar a cena síntese desse mundo plastificado. Com risadinhas, entrou num salão de beleza e raspou a cabeleireira na máquina zero. Saiu com cara do brinquedo assassino Chucky e berrou para os paparazzos afoitos por uma declaração bombástica: “A merda é de vocês!”

Em contraponto a esta rara demonstração de sinceridade, a ingenuidade e conformismo de nossa Sandy chegam a espantar. “Apesar de me incomodar, entendo que no fundo, os fãs querem saber da minha vida pessoal para saberem se estou mesmo feliz”, disse numa entrevista para o jornal O Globo.

No momento da escrita deste parágrafo, exatamente 43 pessoas aparecem online na minha lista do Windows Live Messenger. No espaço reservado para escrever alguma frase após o nome, pelo menos meia dúzia o utilizam para divulgar a alegria. Mal sabem de que seguem a risca o que a própria página de ajuda da Microsoft sugere para o uso desse recurso. Em tom publicitário: “O lugar ideal para você divulgar seu estado de espírito, a novidade legal do dia, a pessoa que você ama!”.

Bruno diz:
Por que tanta alegria?

Ivi – E o dia nasceu feliz! diz:
Oi. Como assim?

Bruno diz:
A frase depois do seu nome.

Ivi – E o dia nasceu feliz!!! diz:
Ah… hehe… sei lá!

Bruno diz:
?

Ivi – E o dia nasceu feliz!!! diz:
É meio que costume colocar…

Já é tradição a vencedora do Miss Universo aflorar do maiô apertado o juramento recheado de otimismo em proporções mundiais: “Nós, as jovens mulheres do universo, acreditamos que as pessoas de todos os lugares buscam a paz, tolerância e o entendimento mútuo entre si. Nós difundiremos esta mensagem em todo caminho em que pudermos, onde quer que estejamos.”

Pois falemos de paz. Enquanto os ataques insistem em acontecer no Iraque, os funcionários da sede da ONU finalmente entraram num consenso digno de nota. Após reuniões que perpassaram dois anos, a intervenção artística no teto do prédio foi aprovada por unanimidade. O artista plástico espanhol Miquel Barceló costuma se trancafiar no recinto e ficar dias imerso no trabalho, numa atitude que a imprensa já compara com o isolamento de Michelangelo na Capela Sistina. A diferença é que, diferente do taciturno artista italiano que rejeitava ajudantes, Barceló insiste em contar com ajuda de 150 homens de confiança, todos hospedados em hotéis cinco estrelas de Genebra. Custo estimado da obra de arte: 20 milhões de euros, 500 mil provenientes de um fundo de ajuda ao desenvolvimento. “Quero falar da felicidade entre os povos”, Barceló afirma sem receio das críticas.

Assumimos, sem medo de parecermos macabros, estarmos num mundo onde o sorriso tende a ser só deformação. Parece restar uma (discreta) esperança. Curiosamente, vinda de outro clássico do cinema. Em Tempos Modernos, Charles Chaplin insiste que, apesar de tudo, precisamos sorrir. “Mesmo que o coração estiver partido, mesmo que de fato a dor esteja grande”, diz a canção Smile. Não pense, porém, que o sorriso é o mesmo de Gina. Este é assumidamente fragmentado, demasiadamente humano, no atino de que a alegria completa é tão somente utopia.

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