Monthly Archives: July 2008

What about turu, Jerônima?

por Bruno Moreschi
Publicado no caderno Paladar, O Estado de S. Paulo (07/08)

Antes de sair da Ilha de Marajó para mostrar sua cozinha típica no Laboratório Paladar, d. Jerônima Barbosa foi avisada de que ali iria conhecer pessoas de todos os cantos do mundo. Mesmo precavida, não esperava se deparar no elevador do hotel com um gringo branquelo que exclamava, em sua direção: ”Congratulations!” Seu mais novo fã era o irlandês Kevin Thornton, chef do Thornton”s, que figura na lista dos 50 melhores do mundo de acordo com a revista Restaurant. No dia anterior, tinha experimentado a comida de Jerônima na aula. Não entendeu as explicações em português, mas a comida, sim.

Como Jerônima não sabe inglês, os elogios lhe pareceram resmungos indecifráveis. Foi preciso um novo reencontro, dessa vez com tradução simultânea do Paladar, para que os dois conversassem. Thornton não rodeou. Caneta em punho à espera de respostas objetivas, perguntou a Jerônima onde poderia encontrar na Amazônia cogumelos alucinógenos de qualidade (”good hallucinogenic mushroons”). Os olhos da senhora de 69 anos se esbugalharam e, receosa, deixou claro que não entendia ”dessas coisas”.

Mudando de assunto, Jerônima quis saber por que o pessoal da terra de Thornton é tão fascinado por batata e como era a cozinha dele. Com a mesma caneta dos cogumelos, o chef desenhou um de seus pratos: uma base de vegetal servindo de suporte a uma vieira, caviar e uma folha de ouro. ”Ouro?! Que coisa chique”, comentou Jerônima.

Por mais que búfalo de Marajó não se assemelhe a cerveja Guinness, ambos aprenderam a cozinhar observando as mães no fogão. Jerônima esqueceu o susto inicial. Arriscou um ”thank you”, mas Thornton não entendeu como despedida. Queria mais papo. ”A senhora pode me falar do turu?”, perguntou, interessado no molusco da Amazônia, servido por ela na aula, que, mesmo sem efeitos adicionais, o impressionou muito.

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Etelvino, o bom companheiro

Com jeito acanhado, ele conquistou quase todos da rua por Bruno Moreschi
Publicado na revista piauí (07/08)

O cara pode ser um banana, um idiota, um mala. Pode ser uma mão na roda ou pode ser um estorvo. Pois Etelvino não era nada disso. Era um buraco, depois de ter sido sorveteiro. Na sua segunda encarnação, a de buraco, nasceu em maio de 2006, na estreita rua Camomila, num bairro da periferia de Curitiba, a Vila Zumbi dos Palmares. Cresceu com certo acanhamento, tanto que demorou alguns meses até que os transeuntes o notassem. Também, pudera: disputava espaço e fama com inúmeras deformidades da rua, entre as quais o bueiro destampado que atingiu o estrelato ao causar uma perna engessada no menino Tiago Barros.

A competição foi dura, mas Etelvino se saiu bem, tanto que conquistou admiradores como Raimunda Correia, que gosta de homenagear ilustres falecidos pendurando uma fotografia do defunto na parede da sala. Ali estão familiares, amigos e um galã de novela mexicana de cujo nome ela não se lembra mais. Um retrato, porém, se destaca na galeria. Bem ao lado da Santa Ceia de Leonardo da Vinci, a imagem mostra a dona da casa abraçada a seus vizinhos. A turma forma um semicírculo em torno de Etelvino. “Até hoje ele dá saudades na gente”, suspira Raimunda.

Para ser batizado, Etelvino precisou ganhar corpo, o que no caso de um buraco significa aumentar consideravelmente de tamanho. Não foi tão difícil. A Vila dos Zumbis é cortada pela BR 116, rodovia que liga a capital paranaense a São Paulo. Com alguma freqüência, um ou outro caminhão desorientado se desvia da rota e colabora para estropiar ainda mais o asfalto da área. Perdido naquele solo quase lunar, a tendência do motorista é direcionar o veículo para a direita da rua, onde há menos buracos. Nesse lado Etelvino reinava quase absoluto – e foi assim, enfrentando sozinho a truculência, que alcançou exatos 52 centímetros de diâmetro por 19 de profundidade, isto é: atingiu a maioridade.

Pode-se dizer que seu caminho para a glória se revelou o mais esburacado possível. Ele teria se tornado um obstáculo entre tantos no mundo, caso não tivesse conquistado a simpatia de quase todos. A história é assim: o aposentado Valdomiro Passos, morador da única casa amarela da rua, é conhecido por sua aversão ao mundo. Só sai quando precisa comprar alguma coisa no bar da esquina, quase sempre pão francês, mortadela e a pinga mais forte que houver. Em dezembro de 2006 ele exagerou na dose e, de madrugada, só de cuecas, se pôs a correr pela rua. E ia assim, esbravejando frases sem sentido e acordando a vizinhança, quando de súbito deu com o buraco. Estancou, perscrutou o que tinha diante dos olhos e, depois de um segundo de deliberações, decretou, fulminante: “A partir de hoje você tem nome. É Etelvino! Em homenagem àquele que nunca voltou!”

Valdomiro se referia ao sorveteiro que vinha visitar a Camomila duas vezes por semana. Ao som de uma buzina, o corpo sempre vergado no esforço de empurrar o carrinho, Etelvino I representava muitas coisas: alegria para a criançada da rua, terror para a economia das mães e, para Valdomiro, os vestígios de alguma antiga sociabilidade. O sorveteiro teimava em apertar a campainha do casmurro para lhe oferecer, de graça, um picolé de limão, não se sabe a troco do quê.

Mas de um dia para o outro Etelvino I se foi, simplesmente sumiu, desapareceu como conversa de elevador. “Quando o Valdomiro viu o buraco, deve ter pensado na amizade com o sorveteiro, e aí se reavivou o único laço social que ele mantinha na vida”, conjectura a professora municipal Jusmerinda Carvalho, “a mais entendida do bairro”.

A livre associação buraco/sorvete fez as crianças olharem a craterinha de um outro jeito. Antes, nem reparavam nela. Durante as brincadeiras, Etelvino II se mostrou o mais leal dos companheiros. Aceitava todas as regras, estava sempre disposto e não se importava em ser a própria brincadeira. O pula-em-pé, por exemplo, consistia em se distanciar três metros do buraco e, num só impulso, cair de pés juntos no centro dele. Vencia quem aterrissasse como uma ginasta russa, dessas que levam dez de todos os juízes. E Etelvino, o buraco, tinha também amigos mais velhos. Por volta das seis da manhã, quando iam para o batente, os chefes de quinze das dezenove famílias da rua costumavam cumprimentá-lo: “Bom dia, Etelvino.” Na volta a cena não se repetia, decerto porque adultos cansados só enxergavam um obstáculo a mais no caminho.

O segundo aniversário de Etelvino foi comemorado com Sidra Cereser, bolo da doceira Ivonne Bastos e até duas velas no centro do aniversariante. No fim da festança, os moradores decidiram operar uma mudança no calendário. Para economizar, juntariam duas efemérides numa só: dali em diante o natalício de Etelvino cairia no dia 31 de dezembro, precisamente à meia-noite.

Mal sabiam que novos aniversários não viriam. Etelvino não resistiu à fúria de quatro famílias que insistiram em confundir sua presença com falta de poder público. “O que antes era uma brincadeira saudável virou uma enorme cratera”, explicou Cida Fontes, proprietária da única casa com carro pós-1999 na garagem e a mais indignada da turma dos contraburacos. Doze ligações para a prefeitura e até que enfim, numa tarde de outono, um caminhão apareceu. Etelvino foi enterrado vivo. Os mais velhos, em especial o solitário Valdomiro Passos, ainda lamentam o passamento. Deveriam aprender com as crianças, que sem cerimônia substituíram Etelvino por Reinaldo, buraco menor, mas tão legal quanto o preenchido.

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